quarta-feira, 4 de abril de 2012

Um dia acordei com o cantar do galo e descobri que queria ser escritora...
Muitas pessoas me perguntaram ao longo desses verdes anos e ainda perguntam até hoje  como foi que tudo isso começou ?
Nós eramos cinco irmãos de uma familia sem muito poder aquisitivo e fomos praticamente criados dentro de escolas, porque a minha mama era professora e antigamente as instituições governamentares ofereciam aos professores da zona rural  casas para morar . E nessas casas sobravam duas  repartições que eram uma sala de aula onde ela ministrava aulas  e uma biblioteca. Depois das aulas já não tinha mais nada para uma miúda estranha como eu fazer.Não tinhamos televisão e nem  sonhávamos que  um dia existiria internet. Só havia um rádio a pilha insuportável que mais chiava do que cantava! Então eu ia para a biblioteca e ficava folheando livros e olhando as figuras. Tinha uma coleção chamada a bolsa de livros e havia mais de 200 livros infantis e juvenis. Eu esparramava tudo no chão e ficava horas e horas ali olhando os desenhos. Mas não lia nenhum. Um belo dia avistei um livro surrado e na sua capa tinha um desenho intrigante. Peguei_o e li o seu título: " A bolsa Amarela " da escritora Ligia Bujunga Nunes. O desenho da capa era  uma bolsa amarela. A minha cor predileta. Comecei a lê_lo e até esqueci do barulho daquele galo que cantava com força no terreiro! E esqueci também do pampeiro que aquele rádio a pilha fazia quando chiava, chiava.....parecia uma caixa de barata! Aff!
Quanto mais eu lia, mais o conteúdo daquele livro me embriagava. Mais a magia daquela história contagiava o meu dia. Entretanto, de repente fechei_o e econdi_o dentro da minha gaveta. Senti medo que a cena chegasse ao fim. E toda aquela história fascinante acabasse e todo aquele brilho se apagasse. Passado alguns dias retomei a leitura, então eu senti o que era o amor......
O cupido do amor pela leitura tinha acertado em cheio o meu coração. Eu tinha 11 anos quando me apaixonei loucamente pelas palavras. Li todos os livros da série Bolsa de livros em menos de um ano. Estava mesmo embriagada e continuava querendo beber cada letra que aparecia na minha frente! Nada mau! Subsequentemente, já não me contentava  só em ler, nem sonhava mais em ser a protagonista das histórias, queria mesmo era ser contemplada com aquele milagre. O milagre de embriagar alguém de felicidade. Queria fazer alguém se sentir como eu me senti quando li A bolsa amarela. Radiante! Acho que ninguém via nada naquele livro, eu via tudo! Podia olhar dentro dele. Eu podia olhar para dentro daquele  livro em especial, enchergar a sua graciosidade e  não era apenas olhar e ler palavras soltas, insignificantes! Era como se o livro tivesse alma. Realmente acho que eu era uma figura esquisita! ( Lindo!)
O livro a Bolsa Amarela me fez sonhar, viajar, rir e chorar! Me criou e me recriou, abriu meus olhos vedados! Me fascinou verdadeiramente. Aquele livro  parece que expressava todo o segredo da minha própria essência. Deu a minha infância toda pureza que ela pode possuir. Foi o meu primeiro amor.....
Mais tarde li o livro Pollyana da escritora Eleonor H. Porter. Mundo fantástico do contente! Que nem todo o mundo leu. Ai que dó! A seguir me casei de véu e grinalda e flor de laranjeira com o livro " Menino Azul " meu segundo amor.......
E depois vieram os amantes....
Os livros sentiam as palpitadas do meu coração......
E ele era tão enorme cabia uma enciclopédia dentro...cabia todos os meus amores: A ira dos Anjos, A ilha perdida, O conde de Monte Cristo, O retrato de Dorian Gray, Tocaia Grande, Sete Cartas e um coração, O pequeno príncipe......
Entretanto nem sempre fui compreendida pela minha superiora progênitora , porque ela não entendia meu velho e gasto hábito disparatado de ficar dentro do quarto a escrever! Minha mãe achava que esferográfica e os papéis eram meus inimigos, principalmente quando nada mais no mundo já me interessava. Talvez de certa forma ela estava certa, pra escrever não precisava propriamente se isolar do planeta para habitar num mundo onde quem reinava era o alfabeto. As vezes era radical....rasgava mesmo meus escritos, não entendia minhas manifestações culturais. Ler era permitido,passar horas e horas a escrever era expressamente proibido. Entretanto, eu não conseguia parar de escrever, era um bichinho que coçava  na minha mão direita. Ela ia rasgando e eu ia costurando.....
Lendo, escrevendo, colando os  pedacinhos. Amor proibido é muito mais gostoso, até a minha avó sabe disso! Não escrever era e é pra mim um mundo sem estrelas....
E a vida foi andando, tão calma e lentamente como o pousar de uma borboleta. E eis_me aqui. Escritora. Ironicamente.....

quinta-feira, 15 de março de 2012

Prefácio do livro " Flor do Quilombo "

Flor do Quilombo narra a história de uma procura emocionante: Uma menina negra de treze anosque sabe ouvir a magia sensual das vozes conta,de fato, de fato, sua iniciação adolescente na descoberta de si,atravésdo desaparecimento do outro, do professosr_talvez um dentre esses numerosos professores
nascidos em comunidades rurais ou urbanas,que gostam de suas raizes e que sabem aprender com os mais velhos.
Assim são contados, pela própria menina Luanda, histórias do povo do seu quilombo, histórias do povo negro, da escravidão e da libertação, histórias do mundo social do interior , histórias de crianças e adultos . As vezes, o poeta em nós , leitores ,descobre trechos de grande intensidade e originalidade, que nos aproximam muito da narradora. Outros trechos trazem conhecimentos da poética das lendas e falas ,das crenças e dos gestos populares_alguns bem conhecidos, outros bem surpreendentes.....
A partir deste livro, alunos e professores poderão construir uma relação  pedagógica muito rica, voltada para o resgate da memória popular e para a escuta mútua entre adolescentes adultos :" Eu não quero você por aí chorando o leite derramado, procurando culpados,apesar que é difícil viver com lembranças doloridas
_uma fala do professor reencontrado em relação ao passado, outra fala dele ,para pensar no futuro:
" O homem ou a mulher que tem tudo é , sob certos aspectos, alguém pobre. Nunca saberá o que é
receber de quem ama, algo que sempre quiz e nunca teve.
Vamos/ leitor/a , conforme ensina o professor, nunca abrir uma janela mecanicamente. Quando fizer, deixemos entrar um pouco de perfume das flores, entrar um pouco de perfume das flores, entrar um pedaço do azul do céu, o burburinhos dos pássaros e um pouco do mel alaranjado dos raios do sol . E receber
um beijo imensamente negro........                                       
                                                       Jacques Zanidê Galthier, em Toulouse, na primavera de 2006

quarta-feira, 14 de março de 2012

Flor do Quilombo

O livro que o leitor tem em mãos inspira-se na saga histórica dos quilombolas de Furnas do Dionísio. O título "Flor do Quilombo" sugere a sensibilidade arguta de uma escritora que está acima das dívidas morais, ou de rancores raciais, sem deixar de ser crítica e, em momentos mais contundentes, acrelírica. O centenário dessa comunidade não poderia ser comemorado de maneira mais honrosa, pois temos aqui a primeira publicação de sua história, que também é a história do negro sul-mato-grossense e, por extensão, do negro brasileiro. Estas "lendas e narrativas" distingue-se tanto pelos temas tratados quanto pela mão que as escreve, a mão de uma negra que registra as tradições orais de furnas do Dionísio, misturando mito e realidade, desocultando-as para o povo brasileiro.

Cântico Negro




"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio

terça-feira, 13 de março de 2012

O malandro arrependido


Ela tinha uma cintura bem torneada
cadeiras cheias
e caçava os machos nos arredores de Copacabana.
pelo seu jeito de me dizer: Meu anjo
te apeteço?
eu vi logo que se tratava de uma debutante.

Ela tinha talento, é verdade, eu o confesso.
Ela tinha gênio,
mas sem técnica um dom não é nada.
Certamente não é tão fácil ser puta como ser freira,
pelo menos é o que se reza em latim na Sorbonne.

Sentindo-me cheio de piedade pela donzela
ensinei-lhe os pequenos truques de sua profissão
e ensinei-lhe os meios para fazer logo fortuna
rebolando o lugar onde as costas se assemelham à lua,

Porque na arte de fazer o trottoir, confesso,
o difícil é saber mexer bem a bunda.
Não se mexe a bunda da mesma maneira
para um farmacêutico, um sacristão, um funcionário.

Rapidamente instruída por meus bons ofícios
ela cedeu-me uma parte de seus benefícios.
Ajudavamo-nos mutuamente, como diz o poeta:
ela era o corpo, naturalmente, e eu a cabeça.

Quando a coitada voltava para casa sem nada
dava-lhe umas porradas mais do que com razão.
Será que ela se lembra ainda do bidê com
que lhe rachei o crânio?

Uma noite, por causa de manobras duvidosas
ela caiu vítima de uma doença vergonhosa,
então, amigavelmente, como uma moça honesta
passou-me a metade de seus micróbios.

Depois de dolorosas injeções de antibióticos
desisti da profissão de cornudo sistemático.
Não adiantou que ela chorasse e gritasse feita louca
e, como eu era apenas um canalha, fiz-me honesto.

Privado logo de minha tutela, minha pobre amiga,
correu a suportar as infâmias do bordel.
Dizem que ela se vendeu até aos tiras!
Que decadência!
Já não existe mais moralidade pública
no nosso Brasil!
( autor desconhecido